"A IDENTIDADE MÉDICA" texto de Dr. Fernando Pitrez aos alunos da FAMED e profissionais médicos.
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Professor Dr. Fernando Pitrez |
TEXTO ESPECIALMENTE REDIGIDO PARA O SEGUNDO MOMENTO DA PALESTRA "PRINCÍPIOS DA CIRURGIA PALIATIVA" MINISTRADA AOS ALUNOS DA FAMED E PROFISSIONAIS MÉDICOS.
“A
Medicina é ciência, arte e tecnologia: ciência, o
saber pelo estudo: arte, a criatividade em prol da ciência;
tecnologia, o método a serviço da
ciência e da arte“. F.Pitrez
Como é próprio dos tempos atuais, a Medicina contemporânea tende a
tornar-se paulatinamente mais dinâmica, mecanizada e impessoal. Passa a ser
balizada por novas comprovações científicas,
afastando paulatinamente o médico do paciente. Este torna-se, então, sujeito a
esquecer ensinamentos básicos e imorredouros nos quais ainda hoje se apoia o
bom senso e a sabedoria médica. Em
linguagem figurada seria o filho que, ao crescer, negligencia as sábias
recomendações maternas.
O diverso e contínuo avanço da nobre
profissão médica segue uma árdua e sinuosa trilha, permeada por obstáculos
desafiadores, tanto no que se refere à ciência propriamente dita como no
comportamento ético profissional e doutrinário perante o enfermo e a
enfermidade.
Em anos anteriores, o exercício da
Medicina era intimamente ligado ao desempenho de uma tarefa de tendência
missionária em que médicos, além da atividade profissional, em geral
privilegiavam o raciocínio clínico acompanhado de generoso humanismo na
abordagem dos pacientes. A investigação
da doença resumia-se muito mais ao uso dos primitivos exames de imagem, simples
ou contrastados, e de exames
laboratoriais essenciais.
No momento, a ciência médica, desde o
início baseada em verdades transitórias e relativas, atinge uma fase sui generis onde se observa o
aflorar deste novo paradigma, irreversivelmente baseado em práticas de cunho
tecnológico, progressivamente mais sofisticados e complexos.
O clássico raciocínio médico dedutivo/indutivo,
dá lugar à mera análise de modernos exames subsidiários. Igualmente abstrai “a parte do todo” e fragmenta o paciente em
órgãos ou sistemas orgânicos sem uma visão holística.
É deixado
de lado o sábio aprendizado de que homem é corpo e mente ou, como queiram,
matéria e espírito os quais são indivisíveis. Uma genuína interpenetração de
uma com a outra. Desta forma a doença atinge simultaneamente as duas entidades,
desequilibrando a harmonia. O que abrange uma, fatalmente reflete-se na outra,
nascendo daí o milenar brocardo de que “há doentes e não doença” ou seja, a
enfermidade alcança a totalidade do
ser humano e como tal deve ser
encarada. É função médica reconstituir o equilíbrio e restabelecer a
individualidade.
A prática do alcunhado sacerdócio no
presente, é muito mais a desincumbência de um intrincado conhecimento
cientifico atualizado, do que apenas o executar de uma tarefa de natureza divina.
A ciência dominante na arte da medicina
tende a eleger o mecanicismo em detrimento do altruísmo, o que é lamentável. A
máquina diagnostica a doença, o médico, o doente. Supervaloriza
a ciência e minimiza a consciência
Naufraga o artista, emerge o cientista.
O móbil deste fenômeno é o assombroso
desenvolvimento da informática nos últimos tempos que impeliu o mecanicismo a
avançar em passos céleres e que passou a substituir, com vantagens
irrefutáveis, funções que até então, eram de exclusiva atribuição humana. Como exemplo notório desta
realidade, basta mencionar o uso corriqueiro da Ultrassonografia, da TC e da RM,
em substituição ao tradicional estetoscópio e ao clássico RX, outrora de grande
utilidade e atualmente, empregados circunstancialmente. Em cirurgia,
igualmente, os procedimentos convencionais vêm sendo gradativamente
substituídos com vantagens indiscutíveis pela instigante e desafiadora
abordagem videolaparoscópica.
Desta maneira
o facultativo emergente é um novo personagem, o especialista que tende a pertencer muito mais a um universo tecnicista, com uma atribuição
altamente diferenciada, do que à confraria original de profissionais probos, dedicados
à práticas compassivas e procedimentos tradicionais. Esta tendência irreversível
– mas necessária e imprescindível - é a responsável pelas atuais residências e
estágios em serviços de excelência, contribuindo de modo expressivo para a
perda da Identidade do médico contemporâneo. Refém da mecanicidade,
esquece a formação básica recorrendo à especialização precoce para alcançar o
competitivo mercado de trabalho.
O avanço da tecnologia e a consequente especialização é causa
preponderante do progresso da Ciência Médica em prol da humanidade. Todavia no
seu âmago, traz consigo a indesejável regressão intelectual e cultural
do Médico atual. O que é ganho em profundidade, é perdido em abrangência.
A máquina
passa a balizar a conduta
Mesmerizado, por este atraente estímulo hodierno
e preocupado, muito mais com a proficiência e formação técnica e científica, muitas
vezes o jovem médico vê-se predisposto a minimizar o sofrimento do paciente,
invertendo, deste modo, a imutável
pirâmide que deve ser construída invariavelmente a partir do clássico exame
clínico. A máquina afasta o doente do
médico. “É quase uma Medicina sem médicos”, como afirmou Henrique Pinotti.
O que se denomina Identidade Médica, em última análise, exprime a obediência férrea aos princípios éticos fundamentais da
aptidão de curar. É o exercício profissional da Medicina, na verdadeira acepção
do termo e não apenas ao desempenho de uma tarefa altamente diferenciada, como um mero
“técnico em Medicina”.
É algo a ser preservado a todo custo,
pois a sua privação ofusca os princípios
básicos que norteiam o próprio
compromisso hipocrático e desqualifica o
médico em seu distinto ofício.
A compreensão deste preceito é um
fator essencial para o entendimento da relevância da tradicional relação médico-paciente,
cuja ausência inviabiliza o exercício pleno da clínica em sua essência. É
sabido que o estado psicológico do paciente é fundamental tanto na gênese como
na cura da doença. A sadia relação entre médico e paciente comprova de modo
irrefutável essa assertiva. O próprio Pasteur, cientista cartesiano, já
reconhecera este fato, ao afirmar: “... muitas vezes ocorre que a condição do
paciente – a atitude mental - forma barreira insuficiente para conter a invasão
de seres infinitamente pequenos”.
Cumpre-se, desta forma, a função
médica integral que é a base da formação da verdadeira compreensão da Identidade Médica.
Como corolário inevitável neste
momento, além de sua importância tanto no diagnóstico como na evolução da
própria enfermidade, o saudável relacionamento médico-paciente constitui-se na
mais poderosa arma disponível para contrapor-se ao malfadado “processo por erro médico”. Este, por
sinal, no momento, comporta-se como uma legítima “espada de Dâmocles” a pairar
sinistra sobre suas cabeças. A suposta falha médica, não dispõe dos “embargos
infringentes” para livrá-lo de uma provável
pena.
Isso tudo, entretanto, não deve servir
de motivo para críticas mais candentes e a satanização do irreversível modelo
presente. O emprego do mecanicismo foi um passo gigantesco na história recente
da humanidade. Sem ele, a prática médica torna-se retrógrada e ineficiente, o que é inaceitável.
A clínica e a cirurgia não sobrevivem sem o acréscimo da
tecnologia.
No atual estágio evolutivo em que se encontra
a coletividade humana, torna-se indispensável
que a classe médica assuma um caráter distinto para que seja acatada e respeitada, como era em tempos idos.
Hoje em dia, boa parte da sociedade coage o médico a ter conhecimento e atitudes onipotentes,
exigindo do mesmo uma
infalibilidade profissional inatingível,
dom esse que é concedido apenas à deidade. Como sabiamente afirmou Leonardo
Savassi :” Se a sociedade cobra do médico o pedestal da infalibilidade, por que
nega a ele o direito de ser humano?"
Em que pese estas adversidades,
nenhum motivo sequer deve se constituir em fator influente da perda deplorável da
Identidade e da respeitabilidade médica, como eventualmente está ocorrendo. A
renúncia a este privilégio é lamentável. Médicos, apesar dos múltiplos
obstáculos que se lhes antepõem, devem
manter-se no raro patamar conquistado
por estudo, esforço probidade e abnegação.
A luta permanente pela preservação da
vida faz do médico um ser social
diferenciado. Por isso, em todas as condutas adotadas é fundamental que
mantenha incólume a sua distinção profissional. Como bem frisou, há alguns anos
o insigne escritor cirurgião carioca, Júlio Sanderson, já falecido: “ A meditação
que se impõe é a de adquirir a plena consciência de sua tarefa, certo de que
cuidar da saúde e pelejar contra a morte é mais importante para o homem que
todas as outras atividades”.
Na essência dessa concepção, “ser medico”
não é apenas o exercício de uma função como em outros setores da atividade humana.
Muito mais do que uma simples carreira, constitui-se no nobre exercício de uma
vocação proeminente que transcende
qualquer outra atribuição e
situa-se em um pedestal bem superior, que
demanda uma consciência clara sobre a responsabilidade científica, ética e profissional. Corroborando esta
afirmativa, é apropriado lembrar as sábias palavras de Pio Furtado, ilustre cirurgião
oncologista e escritor gaúcho: “Na espécie, somos todos iguais; todavia, no
gênero, distingue-nos uma missão um dia solenemente jurada e todos os outros
dias praticada como profissão de fé”.
“Omnium
artium medicina nobilissima” (A medicina é a mais nobre das artes ).
O império da evidência científica
como norma de conduta, admite-se como postura saudável e necessária, mas não
suficiente. Não basta o lucro material. Para ser verdadeiramente médico é
preciso que o ganho pecuniário seja acompanhado do júbilo em aliviar o
sofrimento do próximo. A medicina não é um fim por si mesmo, já que seu
objetivo maior é a cura da doença. Os preceitos fundamentais que norteiam a
profissão e a observância sistemática dos preceitos deontológicos são os
alicerces da cultura médica.
Em qualquer circunstância , o objetivo
é a cura, sempre que possível; o alívio do sofrimento quando a cura tornar-se
improvável; o consolo, sempre.
Muito embora sujeita a críticas e
contraposições, esta é a minha ótica. Apesar de reconhecer a obrigatoriedade do
uso da tecnologia e da evidência científica, teimo em reafirmar que a
preservação da prerrogativa do detentor do “poder
de medicar“, além de dignificar a própria medicina, constitui-se em
preciosa salvaguarda ao atual fantasma representado
pelo famigerado processo judicial, tão
comum no momento atual.
Aquele que porventura propõe-se a trilhar os
caminhos da sublime arte de curar, deve estar muito mais preocupado com a
preservação da higidez e bem-estar de seus pacientes do que com questões
subalternas de menor importância. Nada mais que isso. A primeira atitude que se
impõe neste momento difícil pelo qual atravessa a diferenciada profissão médica, é adquirir a
plena consciência de sua nobre missão, mantendo-se inflexivelmente no elevado patamar da
honradez de sua Identidade Médica.
É um bem precioso que deve ser preservado
a todo custo para que o médico atual possa assumir as sua prerrogativas e
exercer com soberania à missão a que foi destinado.
Fernando Pitrez
Fernando Pitrez
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